http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/321.htm


Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2

A MÁQUINA DE GUERRA DA LÍNGUA DE SINAIS1
Manoelisa Goebel 2- UNIJUÍ
1  Artigo baseado no projeto de pesquisa do mestrado. Orientador : Prof. Dr. André Souza Lemos
2  Mestranda do Curso de Mestrado em Educação nas Ciências – UNIJUÍ e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais. E-mail: manoelisa@hotmail.com

Introdução: Vivemos sob as leis erigidas de  uma força maior. Através da sua organização nos envolvemos, convivemos, criamos laços e nos constituímos através de um código por ela eleito. Somos aquilo que nos é possibilitado, capturados por este sistema. Segue-se um pacto, respeitam-se as regras do jogo, subordina-se ao estabelecido, sem perceber  a palavra de ordem que está por detraz de tudo. “A professora não se questiona quando interroga um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo. Ela” ensigna “, dá ordens, comanda”.(Deleuze & Guattari, 1995, p.11- Vol.2).  Mas, sabe-se que sempre haverá luta, pois sempre existirão aqueles que não se deixarão envolver no processo, não serão sugados muito menos enquadrados, tornando-se uma outra máquina, a máquina de guerra contra o poder do Estado. Não concordarão com as imposições da sobrecodificação, muito menos a condição criada para eles. Desejarão formar seu próprio código, sair do lugar que lhes foi dado dentro do sistema, se é que foi dado algum lugar, algum nome. Buscarão sobreviver nos vários embates, pois estarão indo contra a norma, não se conectarão ao restante, não terão as mesmas condições nem mecanismos, pois afinal de contas quebraram o pacto e  irão conjurar o estabelecido. O Estado é a soberania, mas a soberania só reina sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente e as minorias, os bandos, confirmam os direitos de sociedades segmentarias contra os órgãos de poder do Estado, como citam Deleuze e Guattari, na obra Mil Platôs3: Capitalismo e Esquizofrenia. Não estando sob a mesma lei, é necessário ir ao encontro das suas próprias leis, do seu próprio código, em movimentos de fuga, não aceitando subjugação, no entanto, ficando fora, criando suas próprias formas de existência e sobrevivência. Nasce então o excluído, na verdade um personagem coletivo para esta história, pois a imposição de um significante pela lei maior,  faz nascer fluxos de descodificação, uma multiplicidade de fugas, movimentos de minoria e maioria. Minoria, pois não terão a conexão com o todo do Estado, maioria, pois entre eles, estarão interligados através da condição que os une, a regra que não seguem. Seremos, qualquer um de nós, maioria e minoria, sou mulher, ou seja, não-homem, sou branca, não-negra, sou loira, não-morena, sou ouvinte, não-surda, ora farei parte, terei um “e” de ligação, ora não, mas nunca somente uma só minoria ou uma só maioria. Discussão: baseando-me  na obra anteriormente citada, Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia, é possível comparar a luta de uma máquina de guerra contra o aparelho do Estado, como sendo a luta travada pela língua de sinais e todos a ela conectados, principalmente seus principais usuários, denominados aqui de Surdos, contra a lei maior previamente estabelecida, a qual lhe coloca num lugar social de minoria, pois ainda hoje em vários momentos não é considerada uma língua de fato. Júlia Kristeva 4diz que a linguagem é como uma chave do homem e da história social, é como uma via de acesso ás leis do funcionamento da sociedade. É tendo este acesso, que pertenço a sociedade, faço parte e serei um da “maioria”, pois tenho criados para meu desenvolvimento mecanismos adequados, os quais me dão o devido suporte, garantindo que eu esteja neste lugar e nesta condição. No entanto, há um mito, que envolveu e constituiu a esfera que engloba todos aqueles, que por algum motivo não usaram a linguagem verbal e que conseqüentemente, não puderam ser capturados na máquina do Estado. Em virtude disto, fecham-se as possibilidades de evolução, destinando já um pertencimento a “minoria”. Um significante para tudo isto nasceu, para justificar que não estão em concordância com o que o poder maior deseja,  ou seja, o código explicita que fogem da norma,  não são capazes de ser como deveriam ser, são deficientes. Este estigma dá início a um subsistema, criado para justificar a própria incapacidade de conseguir capturar estes que não se rendem à guerra. A marca, condicionada pela incapacidade,  vive ainda, é  interiorizada numa das várias línguas que vivem na língua de sinais e tem passado de geração em geração através da cultura dos Surdos. É o preço que pagam, por terem quebrado o pacto, aquele de nascer sadio e perfeito,  necessitando que uma normalização fosse imposta pelo Estado, como nas primeiras tentativas de educar o Surdo, onde primeiramente tentou-se impor a regra, num processo que desejava torná-los como os demais, participantes de uma “maioria”, obrigando uma forma de comunicação que não é a natural, usando signos vocais, desejando sobrecodificá-los, renegando a verdadeira essência, não aceitando a ruptura. Noutro, como na comunicação total, onde tudo poderia ser utilizado para proporcionar aprendizagem, desde que primordialmente o som fosse o agente principal, seguindo então de gestos e até,s e necessário, em último caso, a língua de sinais. Imperando a vontade do rei, a linguagem verbal com toda sua gramaticalidade era o correto, o único meio formal de construção do conhecimento. No entanto, o elo que a língua de sinais proporcionou entre a maioria desta minoria fortaleceu a vontade de superar os limites, fechou o grupo sobre ele próprio, construindo a máquina de guerra dos Surdos contra os não-surdos.  Em virtude, de o Estado pensar que estes eram como os bandos ou malta, grupos em forma de rizoma, que não são como os arborescentes, que concentram o poder em um único órgão,  condições outras não foram possibilitadas e  a língua de sinais bem como os seus usuários nativos, não tiveram os mesmos agenciamentos e estes por sua vez, não puderam abrir para novos caminhos. Foram negadas conexões, meios associados a esta estrutura modificada que se erguia, resultando uma evolução desqualificada, contribuindo para a condição e significância deficiente, rompendo com as possibilidades de conquista de seus espaços. Quando falo em agenciamentos e conexões, penso família e escola, principalmente. São como estratos, camadas da sociedade que necessitam se entrecruzar, estabelecer vínculos para que circulem por ambos. Neste caso, a família, a primeira instituição na qual estamos inseridos, caso nunca tenha tido experiência da língua de sinais, sofre, morre e necessita renascer, para poder aceitar a diferença. Mas o que acontecia, em virtude da significância da surdez, não aceitava a língua de sinais, portanto não aceitava seu filho e este, quando conseguia, tinha um desenvolvimento tardio da linguagem e raros eram aqueles que tinham acesso a língua de sinais, pois desde a descoberta da deficiência tinham o estímulo da fala através de atendimento fonoaudiológico, conforme a visão patológica, necessidade da cura. Na camada escolar, não era muito diferente, no início em asilos, distantes da sociedade para não causarem maiores problemas, depois em escolas especializadas, mais tarde classes especiais e salas de recursos. No entanto, os profissionais que aí estavam, ainda não tinham o conhecimento da importância da estimulação precoce da língua de sinais, pois esta ainda não era língua de fato. Na verdade, todo o contexto educacional e familiar, marcado com a codificação do Estado, querendo, desejando que eles recobrassem a capacidade do uso das cordas vocais e da audição, tornando-se seres normais, podendo então conviverem na sociedade. Enquanto isso, era nos porões, nos guetos, no encontro da maioria da minoria, que a língua se tornava língua de fato, pois nos momentos em que eles tinham liberdade de serem eles próprios, a aprendizagem acontecia, o conhecimento tinha acesso livre, eles evoluíam. E este foi o processo, que percorreu por muitos anos a língua de sinais. Outro fato, contribui para seu status de não língua, a de ir contra gramaticalidade usual, já que não possuía a mesma estrutura lingüística. “Você constituirá frases gramaticalmente corretas, você dividirá cada enunciado em sintagma nominal e verbal” (Deleuze & Guattari, Vol. 1 p, 15). Mas, como construir frases corretas, se não havia respeito a sua forma de expressão primeiramente, segundo, a escrita não era nada compatível com a fala, pois era destinada àqueles que usufruíam a linguagem verbal, conseqüentemente, terceiro, não haviam profissionais, nem métodos apropriados para seu desenvolvimento e assim caia-se no círculo vicioso,  novamente considerados inaptos, incapazes de construir conhecimento, reforçando o significante da deficiência. Para  “piorar” a situação, com a evolução dos grupos minoritários, eles tornaram-se um povo, mas sem uma pátria ou território. Como diz Wrigley, “a surdez é um” país”, sem um ” lugar “próprio. É uma cidadania sem uma origem geográfica, á uma ausência de âncora, não é um país reconhecido” (1996, p. 13). Esta é uma das bandeiras de vitória, que a língua de sinais proporcionou erguer, mostrando que através das várias linhas de fuga, este povo nômade, que ziguezagueou por vários cenários, tem seu “chão”, que mesmo espalhado por várias partes do mundo, compondo um mapa de “minorias”, mostra a “maioria” que se une contra a imposição, numa luta constante. Foi preciso que eles se organizassem, para mostrar que são capazes, que possuem seus direitos e deveres, formando associações e federações como a FENEIS, Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos,  o que têm proporcionado melhorias na qualidade de vida e na busca de políticas que contemplem seus direitos, como qualquer outro cidadão. Com isto, hoje vivemos num constante processo de aprimoramento, tanto daqueles profissionais, não-surdos que atuam na área da educação, bem como eles próprios, lutando para que os mecanismos sejam criados, pressionando o Estado, para que a lei de fato seja cumprida. Fato que comprova isto é hoje a necessidade de todo intérprete de língua de sinais, passar por um exame de proficiência de língua de sinais via Ministério da Educação e Cultura, assim como o próprio instrutor, provar que conhece sua língua nativa nos diversos contextos. Isto tudo mexe com a própria evolução da língua, já que escola inclusiva e universidade é um patamar alcançado a pouco tempo. Enquanto intérprete de LIBRAS,  a cada dia vivencio o nascimento e reconstrução dos signos gestuais, bem como, apropriação de conceitos e vocábulos pelos surdos, algo que não foi proporcionado adequadamente. Muitos, em virtude disto, consideravam tanto o Surdo, quando a língua por eles utilizada,  uma língua pobre, uma não – língua e eles pessoas sem as mínimas capacidades para atuarem enquanto profissionais ou fazerem parte da sociedade. Mas isto se deve a falta de estrutura apropriada, condicionando-os, tentando aprisioná-los no mesmo lugar. Por vezes, ao longo de minha caminhada profissional e acadêmica, me questionei o porquê de não possuírem as mesmas capacidades que nós, os não-surdos ou ouvintes, como desejarem chamar. Mas percebi, que o problema não era falta de capacidade, a eles não falta nada, a surdez não é um problema, o que faltou, foram conexões, ligações, máquinas e tecnologias adequadas. A conquista do direito a educação bilíngüe, onde primeiramente o ensino da língua de sinais deve ser estimulada e após, todo o período de aquisição da linguagem aí sim a segunda língua, que será como uma língua estrangeira, o nível educacional cresceu, os Surdos foram conquistando seus espaços, ingressaram na universidade, hoje muitos são pesquisadores buscando melhorias para seu próprio povo, podendo estar inseridos onde desejarem. No entanto,  para que tudo isto aconteça de fato, é necessário profissionais capacitados, que viabilizem o ensino e a aprendizagem significativas, não somente um amontoado de sinais e gestos, mas que reconheçam naquele corpo, um ser de fato. Vejo aí um dos atuais papéis da universidade, proporcionar através de seus cursos de graduação, extensão e pós-graduação, profissionais das mais diversas áreas, que reconheçam a língua que de fato é, conheçam a nação Surda, pois eles poderão ser a alavanca de uma sociedade menos excludente, contribuindo para construção da inclusão social que tanto estamos lutando. Caso, continue-se fechando a língua de sinais sobre ela mesma, somente nas escolas especializadas e na própria comunidade de Surdos, ela dificilmente será reconhecida como tal no âmbito social, mesmo que as leis já as considerem, pois desconhecendo este sistema, não será viável pensar  caminhos para o desenvolvimento contínuo e principalmente para a quebra de paradigmas, o entrecruzamento das culturas, surdas e não-surdas, rompendo com a dualidade. É tendo o Surdo e a língua de sinais em seu ambiente, não como objetos de pesquisa, mas dando condições para fazerem o que é necessário na busca de sua evolução, que estaremos proporcionando uma guerra menos violenta, respeitando as diferenças e não elegendo o som como único meio de linguagem e construção do conhecimento. A máquina de guerra da língua de sinais, na luta contra seu enquadramento numa lei única, hoje tem aqui no Brasil, uma política educacional, ou seja apoio do poder do Estado, que busca romper com a dualidade, maioria e minoria, língua e não-lingua, visando uma inclusão educacional. As leis, como a Lei nº10. 436 de 2002, que reconhece como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais e outros recursos de expressão a ela associados, bem como  o Decreto de dezembro de 2005, nº5.626, que inclui a LIBRAS, Língua Brasileira de Sinais, como disciplina curricular,  o qual fala da importância da formação de professores e instrutores, da proficiência de intérpretes através de exames nacionais, da garantia do direito a educação, á saúde, mostram que esta guerra, agora está no âmbito social, pois a lei maior,  está procurando aceitar. No entanto, se fosse realmente uma língua não haveria necessidade de uma lei, que imponha, ela seria naturalmente usada, teriam condições criadas conforme seu uso, não seria preciso tanta luta. Mas isto se deve aos enunciados, às palavras de ordem pré-existentes, com pré-conceitos incrustados em nossos discursos, que já pressupõem a necessidade de uma sobrecodificação desta língua, da necessidade de organizá-la corretamente, de fazer com que seus usuários nativos, tenham acesso ao som e da fala façam uso. Se nos constituímos através da linguagem, e esta por sua vez é “só pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em um dado momento. (Deleuze & Guattari, 1995, Vol. 2, p. 16). Como a sociedade, ainda possui fortemente pressupostos acerca da surdez, a voz que será trazida, é a da incapacidade. Para tentar romper com todos estes pressupostos, venho novamente reforçar a necessidade de políticas que viabilizem  na universidade,  a busca por ferramentas, por tecnologias e meios que quebrem este veredicto final, o qual tornou o Surdo e sua língua condenados a condição de deficientes. Tanto o estrato familiar, quanto escolar, serão contemplados, pois profissionais Surdos e não-surdos estarão lado a lado, atuando, interagindo, criando redes, nas quais ambos necessitarão estar conectados para que aconteça um evolução, que caminhe no sentido de um rizoma, multiplicidades e não somente de uma raiz única, bifurcada, que no entanto, respeita somente a um poder central.  A guerra nunca cessará, pois afinal, estamos recém no início, estamos recuperando o que foi “roubado” dos Surdos, quando do Congresso de Milão em 1880, o direito de ser. É conhecido, que em várias regiões de nosso país, muitos não têm acesso a condições adequadas de educação e que além disso, os profissionais destes lugares, esforçam-se para não abandonar as salas de aula, em virtude das precariedade nas quais estão atuando. Não é somente a língua de sinais uma máquina de guerra, há a máquina dos cegos, dos negros, das mulheres e de tantos outros que sentem-se “minorias” mesmo fazendo maioria, necessitando de melhores condições de vida e acesso a adequados mecanismos de educação e desenvolvimento. Vivemos a era da informação, da sociedade do conhecimento, fala-se muito de  inclusão social e educacional, mas a diferença mostra a sua real face. Traz consigo marcas de uma frenética luta, na qual a humanidade se fez, deixando para traz tudo e todos que não eram considerados capazes de crescer junto com este processo. Neste mundo globalizado e permeado pelo ciberespaço5 em que vivemos, onde as fronteiras terrestres já não mais são o limite e a tecnologia desenvolve-se a passos largos, o homem continua sua busca por pertencimento, agora a esta sociedade informacional que se constitui fortemente. No entanto, encontramos ainda aqueles que continuam sem espaços definidos, não pertencem ao todo, somente a uma parte, e seu desenvolvimento ainda não flui como os demais. Continuaremos  contribuindo para uma máquina de captura do Estado, visando somente o bem que o poder maior anseia conquistar? Ou estaremos mesmo, desejando romper com tantas fragmentações, bifurcações, com significantes tão violentos, quanto nossos próprios atos, deficientes, incapazes,excluídos, minorias entre tantos outros, freqüentemente usados em nosso dia-a-dia. Somos sim, os verdadeiros culpados da necessidade de construir uma sociedade inclusiva, que necessita criar meios para atender as demandas que urgem, pois condenamos e cortamos todas as possibilidades de superação para aqueles que, no princípio foram  considerados “inimigos”, criminosos, pois tiveram a audácia de buscar outros caminhos, tentando mostrar a errônea concepção criada. A máquina de guerra da língua de sinais foi uma, de tantas criadas. Atualmente, é perceptível, principalmente para aqueles que atuam na área da educação de surdos, o peso da responsabilidade de atuar para a o povo Surdo, pois a exigência de qualificação é altíssima.E eles próprios, sentem agora quem são realmente. Caso o ritmo continue o mesmo, como a sociedade se portará tendo os Surdos o nível de qualificação e desenvolvimento igual ou até quem sabe melhor do que a “maioria”? Estaremos preparados para isto? Não seria uma nova máquina de guerra se erguendo no horizonte que procurará novamente frear este processo?

3  Mil Platôs –Capitalismo e Esquizofrenia - Vol. 5, p. 23
4  História da Linguagem, p.13
5  Novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização e de transação, mas também novo mercado da informação e do conhecimento. (LEVY, 1999, p.32)

Referências
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs:  capitalismo e esquizofrenia, vol.2. São Paulo: Ed. 34, 1997.
_____________________________________________________________________, vol. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997.
WRIGLEY, Owen. The politics of deafness. Washington: Gallaudet University Press, 1996.