Artigos Científicos

Transtorno obsessivo-compulsivo: aspectos neuroimunológicos

Marcos T Mercadante

5 de janeiro de 2010

Rev. Bras. Psiquiatr. vol.23  suppl.2 São Paulo Oct. 2001

Transtorno obsessivo-compulsivo: aspectos neuroimunológicos

 

Marcos T Mercadante

Yale Child Study Center. New Haven, CT, EUA. Protoc (Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FM/USP). São Paulo, SP, Brasil


 

ABSTRACT
This article discusses issues related to the hypotheses regarding the existence of immune mechanisms underlying the pathophysiology of a subgroup of patients with obsessive-compulsive disorder and/or Tourette's syndrome. Though developed from the studies on Sydenham's chorea, other concepts about the immune system regulation hypotheses still need further investigation. The proposition of PANDAS, the pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infection, combined with the results obtained with plasma exchange procedure, which showed a remarkable improvement of the symptoms in children with obsessive-compulsive disorder and/or Tourette's syndrome, have given additional support to this model.

Keywords: Obsessive-compulsive disorder. Tourette syndrome. Chorea, Sydenham. Autoimmune diseases. Receptors, cytokine.

 

 

Introdução

Nos últimos anos, uma série de estudos tem testado a hipótese de haver um subtipo de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e síndrome de Tourette (ST) que seria causado por mecanismos imunológicos. Esse campo de pesquisa está fundado nos estudos em crianças com coréia de Sydenham (CS), a manifestação no sistema nervoso central (SNC) da febre reumática, que descreveram freqüências aumentadas desses transtornos nessas crianças.1-4 Atualmente esse modelo foi expandido, incluindo um grupo de pacientes designados "Pandas", acrônimo de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcal Infections.5,6 Se confirmada essa conexão entre quadros infecciosos, resposta imunológica e transtornos neuropsiquiátricos de evolução crônica, estabelecer-se-á um dos modelos mais relevantes para a neurociência dos tempos atuais.

Este artigo será dirigido às hipóteses, aos estudos e às questões relacionadas principalmente à resposta humoral em um subgrupo de TOC e/ou ST e "Pandas", que, por razões práticas, o presente trabalho nomeia de TOC/ST imunológico. Serão apresentadas mais perguntas do que respostas, pois esse modelo ainda não conta com evidências suficientes que sustentem sua existência, sendo a própria hipótese alvo de muitas controvérsias.7,8

Os critérios para um TOC/ST auto-imune

De fato, essa linha de pesquisa está dirigida a um modelo auto-imune como mecanismo patofisiológico para um subgrupo de pacientes com TOC e/ou ST. Cinco são os critérios a ser demonstrados para que se possa admitir uma etiopatologia auto-imune: (1) presença de auto-anticorpos no plasma e/ou no fluido cerebral dos pacientes; (2) benefício terapêutico com a retirada desses auto-anticorpos; (3) injeção de auto-anticorpos em animal de experimentação reproduzindo os sintomas clínicos da doença em estudo; (4) auto-anticorpos devem ser encontrados no local da patologia; (5) indução do quadro clínico pela sensibilização de animais de experimentação com o antígeno responsável pela formação dos auto-anticorpos.9

Até o momento, a maioria dos estudos esteve dirigida ao primeiro critério1,2,10-14,* (Figura). Apenas um estudo controlado pode responder ao segundo,15 e outros dois, ao terceiro.16,** Um relato de dados preliminares sugere que o quinto critério pode vir a ser atingido em breve.17 Pesquisas de auto-anticorpos no local da patologia não foram realizadas. No entanto, estudo realizado na universidade americana de Yale demonstrou a presença de auto-anticorpos de pacientes com ST no tecido cerebral de ratos que tiveram o soro desses pacientes infundido na região ventrolateral do striatum, sendo que os animais apresentaram estereotipias orofaciais após a infusão desse soro.***

 

 

Ainda que se venha a demonstrar os cinco critérios, outras questões precisam ser verificadas antes que se possa considerar um subtipo de TOC/ST imunológico. Quais seriam os mecanismos que estariam determinando a produção de sintomas obsessivo-compulsivos (SOC)? Seriam mediados por resposta celular, humoral ou ambas? Outros componentes do sistema imunológico, como as citocinas, proteínas produzidas por determinadas células que modulam o comportamento de outras células, teriam algum papel nesse processo? Seriam dirigidos a neurônios ou a elementos da glia que secundariamente interfeririam na fisiopatologia do TOC? Seria apenas um ou vários antígenos, seriam nucleares, citoplasmáticos, ou estariam na membrana neuronal? Seriam dirigidos a fatores de transcrição, transportadores, quinases? O mecanismo seria um efeito funcional, com auto-anticorpos agindo como agonistas de determinado neurotransmissor, ou ter-se-iam microlesões que modificariam as conexões entre as diferentes áreas cerebrais envolvidas no TOC?

Além disso, tem-se de compreender como essa ação imunológica ocorreria no SNC. A barreira hematoliquórica impede, a princípio, a entrada de anticorpos, dando ao cérebro uma qualidade diferenciada como alvo do sistema imune. Essa organização especializada é importante, por exemplo, para assegurar uma proteção contra processos inflamatórios que interfeririam no funcionamento cerebral. Então, como seria o modelo que, integrando todas essas variáveis, esclareceria o modo de funcionar desse subgrupo?

O modelo mais estudado: resposta imune à infecção estreptocócica

Até o momento, o modelo mais estudado é semelhante ao proposto para o mecanismo da febre reumática. Nessas pesquisas, a hipótese mais comum admite um efeito de mimetismo – por exemplo, quando anticorpos dirigidos à proteína M do estreptococo passam a reagir contra a tropomiosina, uma proteína encontrada em células miocárdicas. Tal concepção poderia ser transposta para o SNC, que também expressa essa proteína.18 Apesar da aparente simplicidade dessa proposta, deve-se considerar a enorme variedade de fatores que estariam envolvidos, como as características antigênicas das diferentes cepas estreptocócicas, a variedade de resposta individual, a especificidade desses anticorpos etc. Existem evidências sugerindo que anticorpos com pequena afinidade e pouca especificidade seriam os responsáveis pelos resultados encontrados nos estudos em crianças com TOC e ST (Morshed S & Parven S, comunicação pessoal). Se comprovado, pode-se considerar que diferentes estímulos antigênicos resultariam na ativação dos SOC.

Além da maior prevalência de TOC em crianças com CS, foi descrita uma freqüência aumentada de um antígeno encontrado na parede de células B, chamado D8/17, em pacientes com TOC e/ou ST,19 assim como em crianças com "Pandas".5 Esse antígeno é descrito como um marcador para febre reumática, sendo encontrado em 100% dos portadores,20 o que sugere um outro elo de relação entre os quadros.

Se comprovado, a grande importância desse modelo seria a possibilidade de controle dos SOC com antibioticoterapia, seguindo o mesmo esquema profilático utilizado na febre reumática. Embora um estudo controlado não tenha demonstrado resultado positivo,21 é possível que apenas uma parte desses pacientes com TOC/ST imunológico se beneficie desse tipo de tratamento.

Porém, a questão seria: por que apenas algumas crianças apresentariam esse quadro, uma vez que esse padrão de anticorpos com pequena afinidade e pouca especificidade é o esperado na infância? Entre as várias possibilidades, uma seria a presença de fatores individuais que permitissem o acesso desses auto-anticorpos ao SNC, como pessoas que são hiper-secretoras de citocinas inflamatórias22 e que, por essa condição, poderiam determinar rupturas na barreira hematoliquórica com mais freqüência que a população geral.

Um adendo ao quebra cabeça: a ruptura da barreira hematoliquórica

A barreira hematoliquórica tem sido considerada impenetrável para moléculas do tamanho das imunoglobulinas. Entretanto, estudos recentes demonstraram que alguns fatores podem provocar ruptura da barreira. Um deles é a febre alta, que normalmente acompanha infecções,23 o que poderia ocorrer com uma parte desses pacientes com TOC/ST imunológico. Além disso, admite-se que citocinas podem provocar essa ruptura, o que também é um ponto interessante de pesquisa nesses casos.24 Por exemplo, sabe-se que existem pessoas que produzem quantidades aumentadas de fator de necrose tumoral, TNF-a, um agente inflamatório que pode romper a barreira.22 Seriam esses pacientes com TOC/ST imunológico hiper-secretores de TNF-a, aumentando a chance desses auto-anticorpos terem acesso ao SNC?

Estando dentro do SNC, o que ocorreria? Existem evidências de que haveria um processo inflamatório na CS, sendo associado à presença dos sintomas.25 Poder-se-ia admitir o mesmo para o TOC/ST imunológico. Cinco centros de pesquisa nos EUA estão iniciando um estudo longitudinal com casos de "Pandas" que poderá fornecer essa resposta nos próximos anos. Findo o processo inflamatório, desapareceriam os sintomas? Há evidências, que ainda precisam ser replicadas, de que crianças com infecções de garganta apresentando SOC têm uma duração curta dos SOC e freqüentemente evoluem para remissão completa.

Portanto, poder-se-ia estabelecer a hipótese de um espectro de resposta imunológica, que iria da franca manifestação auto-imune, com evolução crônica, presença de lesão tissular etc., até uma resposta inflamatória circunscrita temporalmente, levando ao desaparecimento dos sintomas após curto período. Entre esses extremos, encontrar-se-iam casos com evolução que pode se tornar crônica se o processo de estimulação antigênica não for interrompido.

Como seria o fenótipo desse TOC/ST imunológico?

Novamente dois extremos poderiam representar as possíveis evoluções encontradas nesses casos. Por um lado, ter-se-ia um subgrupo de pacientes com TOC/ST imunológico apresentando um curso crônico como o observado nas doenças auto-imunes. Por outro, casos com uma evolução extremamente benigna, sendo que a maioria nem chegaria a ser avaliada por psiquiatras, pois os sintomas desapareceriam rapidamente, seguindo o curso de um processo inflamatório agudo.

Um estudo da Yale que reavalia, após quatro anos, pacientes com taxas iniciais elevadas de auto-anticorpos poderá responder essa questão. A análise da qualidade de vida, da persistência do quadro e da gravidade dos sintomas, relacionadas à presença/persistência ou à ausência de auto-anticorpos, poderá esclarecer o papel desses auto-anticorpos no prognóstico desses casos.

 

Conclusão

Existiriam evidências suficientes para a proposição de um subtipo imunológico?

Todas as questões levantadas neste texto precisam de resposta. Apesar do acúmulo de conhecimento decorrido nos últimos dez anos, ainda não se pode afirmar a existência ou inexistência de um TOC/ST imunológico. O próximo passo em termos de estudos básicos seria a caracterização do(s) epitopo(s), o(s) determinante(s) antigênico(s) que estaria(m) causando essa resposta imunológica. Apesar de haver recursos técnicos para isto, os resultados obtidos até o momento não permitem nenhuma conclusão.

Do ponto de vista clínico, é necessária a realização de estudos longitudinais em centros primários de atendimento, permitindo uma visão mais ampla desse panorama. No Brasil, onde infelizmente ainda há uma demanda grande de casos de CS, poder-se-iam estudar as relações entre esses quadros e investigar o(s) epitopo(s) envolvido(s).

 

Agradecimentos

À colaboração de Syed Morshed, Salina Parveen e Paul Lombroso, na realização das imunofluorescências, e a Maria da Conceição do Rosário-Campos pelas sugestões.

 

Referências

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Correspondência: Marcos Tomanik Mercadante
Berger Fellow in Child Psychiatry - Yale Child Study Center - Yale University School of Medicine
230 South Frontage Road - P.O. Box 207900 New Haven, Connecticut, 06520-7900
E-mail: mtmerc@hotmail.com

 

 

Fonte de financiamento: este trabalho foi financiado pela fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp – Processo nº 99/08560-6).

*Morshed SA, Parveen S, Leckman JF, Mercadante MT, Kiss MHB, Miguel EC, et al. Antibodies against striatal, nuclear, cytoskeletal and streptoccal epitopes in children and adults with Tourette's syndrome, Sydenham's chorea and autoimmune disorders. Biol Psych (in press).

**,***Taylor J, Morshed S, Parven S, Mercadante MT, Scahill L, Peterson BS, King RA, Leckman J, Lombroso P. An animal model of Tourette's syndrome. Am J Psych (submitted).


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462001000600010&lng=en&nrm=iso

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