Artigos Científicos

Avaliação da reação de retração no bebê com doenças pediátricas

Francisco Baptista Assumpção Jr, Tatiana Malheiros Assumpção

12 de janeiro de 2010

Arq. Neuro-Psiquiatr. vol.60 no.4 São Paulo Dec. 2002

AVALIAÇÃO DA REAÇÃO DE RETRAÇÃO NO BEBÊ COM DOENÇAS PEDIÁTRICAS

Um estudo de validade

Francisco Baptista Assumpção Jr1, Tatiana Malheiros Assumpção2

 

 

RESUMO - Avaliar a reação de retração da criança pequena a partir de um instrumento padronizado deve levar em conta o contexto psicopatológico e o momento de desenvolvimento da criança. Apresentamos a validação do questionário BADS a partir de sua aplicação em 35 crianças com idade entre 0 e 2 anos, portadoras de doenças pediátricas, provenientes da Santa Casa de São Paulo. Os resultados foram comparados com os obtidos em 90 crianças normais avaliadas em estudo prévio realizado pelo autor, através do teste t independente, obtendo-se média de 5,98 ± 2,57 para as crianças normais e 6,37 ± 4,83 para as crianças com problemas pediátricos, com p=0,651 e nível de significância de 5%. Assim, observamos que as reações de crianças portadoras de doenças pediátricas não são significativamente diferentes daquelas de crianças normais. A partir disso, concluimos que a escala, em função dos resultados, parece ser importante como instrumento de triagem, embora deva ser estudada em outras populações.

PALAVRAS-CHAVE:reação de retração, criança.

 

The baby withdrawal reaction in pediatric diseases: a validity study

ABSTRACT- The evaluation of the withdrawal reaction in small children using a standardized instrument should take into account the child's psychopatologic context and its child's development moment. We present the BADS questionnaire validation by its application in 35 children aged 0 to 2 years-old with pediatric diseases, coming from Santa Casa de São Paulo. The results were compared with those of 90 normal children who were evaluated in a previous study of the same author. The test used was the independent t test, with mean scores of 5.90 ± 2.57 for normal children and 6.37 ± 4.83 for sick children, with p= 0,651 and significance level of 5%. Thus, it was observed that the withdrawal reaction in sick children is not significantly different for that for normal children. With these results, the scale shows its importance as a screening instrument.

KEY WORDS: withdrawal reaction, child.

 

 

A avaliação do desempenho global e do desenvolvimento de crianças em situações de risco, seja ele físico, psíquico, emocional ou social, é uma preocupação de muitos dos profissionais envolvidos no cuidado com essa população. Isso se deve à crença de que a identificação dessas crianças possibilitaria uma intervenção precoce que preveniria prováveis desvios em seu desenvolvimento como um todo. A elaboração de escalas e questionários para a utilização clínica, especialmente na prática pediátrica, tem por objetivo o rastreamento de crianças que possam estar sofrendo algum tipo de prejuízo devido a estímulos nocivos de caráter interno ou externo (ambientais, familiares, orgânicos), para que estas possam ter acompanhamento mais cuidadoso e, se necessário, avaliação e auxílio de outros profissionais além do pediatra geral1. Como exemplos úteis, podem-se citar a Health of the Nation Outcome Scales for Children and Adolescents/HoNOSCA2,3 e a Paddington Complexity Scale4.

A avaliação de recém-nascidos e lactentes quanto a alterações de comportamento e desenvolvimento torna-se difícil devido ao pequeno repertório de reações dessa população. Assim, a reação de retração prolongada surge como uma importante manifestação de desequilíbrio, comum a várias causas, uma vez que a especificidade sintomatológica e sindrômica dos quadros psiquiátricos e neurológicos no bebê é muito pequena.

O conceito de retração prolongada é interessante na colaboração entre pediatras e psiquiatras da infância, em função de seu aparecimento tanto em patologias pediátricas como em patologias relacionais. Ele surge com Brazelton enquanto uma forma de regulação normal da interação, constituindo-se numa reação de alarme que aparece em quadros de depressão precoce, síndromes autísticas ou transtornos invasivos de desenvolvimento, transtornos ansiosos como o transtorno de estresse pós traumático, deficiências sensoriais, problemas nas relações emocionais, alguns transtornos de alimentação e problemas relacionais. Consiste em um "apagamento" da criança com uma resistência aos estímulos relacionais, ausência de estímulos auto-eróticos, rigidez facial, movimentos atípicos de dedos, choro e perda de apetite5. Além disso, deve-se observar que não existem marcadores biológicos ou mensurações objetivas para a maior parte dos transtornos psiquiátricos6, ficando seu diagnóstico a cargo apenas do exame clínico.

Em função disso, em estudo anterior, validamos uma escala diagnóstica de possíveis sintomas psiquiátricos em bebês7. Essa validação, realizada somente com bebês normais, não garante fidedignidade do instrumento, razão pela qual damos continuidade ao trabalho, aplicando-o a outras populações para que se constitua um instrumento de maior utilidade. Considerando-se que a criança reage globalmente aos estímulos a que é submetida6, uma das primeiras dificuldades a ser considerada em relação ao instrumento é a reação do bebê diante de patologias pediátricas8, uma vez que, em seu estudo original, de 1999, Guedeney9,10 aponta a presença de doenças agudas como passíveis de mimetizarem ou produzirem um estado de retração, o que já havia sido notado previamente por outros autores11.

A Escala de Avaliação da Retração do Bebê (Echelle d'évaluation de la réaction de retrait prolongé du jeune enfant ou The baby alarm distress scale – BADS) é uma escala clínica, construída com 8 itens ordenados de maneira habitual e progressiva, idealizada para ser utilizada da maneira proposta por Winnicott12. Ela é pontuada de 0 a 4 em cada um de seus itens e sua pontuação total faz-se através da simples soma aritmética dos escores obtidos. Pode ser utilizada em diferentes locais de maneira simples e breve, principalmente durante o atendimento rotineiro em pediatria7. É, assim, útil no rastreamento de possíveis casos psiquiátricos13, o que nos motivou a continuar o trabalho anterior no intuito de aprimorar o instrumento de acordo com nossa realidade, com objetivo de uso clínico e de pesquisa na área.

 

MÉTODO

Na primeira etapa do estudo, foi feita a adaptação do instrumento com a autorização de seu idealizador, compreendendo sua tradução e back translation, bem como sua aplicação a população originária de creches da prefeitura da cidade de São Paulo7.

Para a realização deste passo, após a concordância dos médicos responsáveis pelo serviço bem como dos familiares responsáveis pelas crianças envolvidas, a escala foi aplicada a 35 crianças internadas no Serviço de Pediatria da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo no período de setembro/2001 a fevereiro/2002, com idades distribuídas entre zero e dois anos (Tabela 1), ambos os sexos (Tabela 2) e diferentes quadros clínicos pediátricos (Tabela 3). Foi obtido o consentimento informado das mães ou dos familiares acompanhantes das crianças avaliadas, bem como da equipe responsável pelo acompanhamento dos casos.

 

 

 

 

 

 

Os dados obtidos através de sua aplicação foram analisados através do teste t independente14, indicado quando se comparam dois grupos de informações com nível de mensuração numérica e amostras independentes.

 

RESULTADOS

A média total dos pontos obtidos foi 5,98 ± 2,57 para o grupo controle, constituído por crianças normais, provenientes de creches da Prefeitura da cidade de São Paulo7 e de 6,37 ± 4,83 para o grupo experimental (Tabela 4), obtendo-se p=0,651 para um nível de significância de 5%, caracterizando os resultados obtidos como semelhantes em ambas as amostras.

 

 

DISCUSSÃO

A avaliação psicopatológica da criança que se encontra no período sensório-motor ( 0 a 2 anos de idade) é difícil e, embora este instrumento já tenha sido padronizado para a população normal em nosso meio, ainda não podemos avaliá-lo quanto a sua fidedignidade na identificação de transtornos psicopatológicos, o que seria de extrema utilidade na determinação de sinais precursores de futuros quadros clínicos para a implementação de medidas preventivas e terapêuticas. A reação de retração prolongada pode ser um bom indicador clínico desses quadros, especialmente no que se refere a quadros de características depressivas e/ou autísticas, uma vez que se baseia em esquemas motores e de sociabilidade passíveis de serem identificados no bebê de 0 a 2 anos (período sensório-motor).

Os resultados obtidos neste estudo não diferiram estatisticamente dos obtidos com crianças hígidas, o que constitui um fator de segurança para sua utilização no rastreamento de alterações psicopatológicas, uma vez que quadros pediátricos não parecem ser captados pela escala. Isso faz com que ela pareça ser mais específica para os transtornos neuropsiquiátricos a que se dispõe estudar.

Poderíamos pensar que uma maior concentração de crianças acima de 8 meses de idade seria a responsável por reações de ansiedade ao contacto com estranhos, o que produziria um viés nos resultados obtidos. Entretanto como a distribuição se fez de maneira homogênea entre os menores e os maiores de 8 meses de idade, a chamada "ansiedade dos 8 meses" pode ser desconsiderada como um fator de viés neste grupo.

Ainda não nos parece seguro calcular um ponto de corte, uma vez que o instrumento necessita de maior utilização e melhor conhecimento. Assim, como terceira etapa, deveremos aplicá-lo em crianças com diagnósticos neuropsiquiátricos prévios específicos para que se possa estabelecer a comparação adequada entre as populações. Tal estratégia mostra-se adequada uma vez que o maior desvio padrão observado nesta amostra deveu-se exatamente à criança que, além de broncopneumonia (motivo de internação e inclusão no estudo), portava também hidrocefalia com comprometimento neuropsicomotor.

Entretanto, devido à facilidade de seu uso e à confiabilidade até agora demonstrada, acreditamos que, após novos estudos, este instrumento possa ser de utilidade prática na pediatria e na psiquiatria infantil como instrumento de screening para a população infantil que se encontra no período sensório-motor de desenvolvimento (0 a 2 anos de idade).

 

REFERÊNCIAS

1. Assumpção TM. A influência dos fatores ambientais no desenvolvimento precoce. Aceito para publicação em INFANTO: em publicação

2. Gowers SG, Harrington RC, Whitton A, et al. Brief scale for measuring the outcomes of emotional and behavioural disorders in children. Br J Psychiatry 1999;174:413-416.

3. Gowers SG, Harrington RC, Whitton A, et al. Health of the Nation outcome scales for children and adolescents. Br J Psychiatry 1999;174:428-431.

4. Yates P, Garralda ME, Higginson I. Paddington Complexity Scale and Health of the Nation Outcome Scales for Children and Adolescents. Br J Psychiatry 1999;174:417-423.

5. Guedeney A. La construction et la validation d'une échelle de retrait relationnel du jeune enfant: voir ensemble pour intervenir plus tôt. Perspectives Psy 2000;39:179-184.

6. Menezes PR, Nascimento AF. Validade e confiabilidade das escalas de avaliação em psiquiatria. In Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi, AW (eds) Escalas de avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia. São Paulo: Lemos, 2000;23-28.

7. Assumpção FB, Kuczynski E, Rego MGS, Rocca CCA. Escala de avaliação da reação de retração no bebê: um estudo de validade. Arq Neuropsiquiatr 2002;60:56-60.

8. Marcondes E. Introdução. In Marcondes E, Sucupira ACSL,Saito,MI, Dias MHP (eds) Pediatria em consultório São Paulo: Sarvier, 1988;1-8

9. Guedeney A. De la réaction précoce et durable de retrait a la depression chez le jeune enfant. Neuropsychiatr Enfance Adolesc 1999;47:63-71.

10. Guedeney A, Vermillard M, Dumont C, Courtier H, Fermanian J. The Baby Alarm Distress Scale (BADS): a scale for assessing and screening sustained withdrawal reaction in infancy. A validity and reliability study. J Child Psichol Psychiatry 1999.

11. Ironside W. The infant development distress syndrome: a predictor of impaired development? Aust N Z J Psychiat 1975,9:153-158.

12. Winnicot DW. De la pediatrie a la psychanalise. Paris: Payot, 1969.

13. Andreoli SB, Blay SL, Mari JJ. Escalas de rastreamento aplicadas na população geral. In: Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi AW (eds.) Escalas de avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia São Paulo: Lemos, 2000;45-52.

14. Agresti A. Categorical data analysis. Washington: John Willey & Sons,1990.

 

 

1Professor Livre-Docente do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Diretor Técnico do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, São Paulo SP, Brasil; 2Acadêmica do 6o ano de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo SP, Brasil.

 

Dr. Francisco B. Assumpção Jr - Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, FMUSP - Rua Dr. Ovídio Pires de Campos s/n - 05403-900 São Paulo SP - Brasil. FAX: 11 3085 0228.


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2002000600016&lng=en&nrm=iso

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