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Processo nº 053.00.027139‑2 (1679/00)

Por: Ministério Público

19 de abril de 2008

6ª Vara da Fazenda Pública

Processo nº 053.00.027139‑2 (1679/00)

 

            Vistos.

 

            O Ministério Público do Estado de São Paulo, com qualificação na inicial, propôs a presente Ação Civil Pública, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela e cominação de multa, contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, com qualificação nos autos, objetivando, em síntese, com amparo nos artigos 196, 198, 227, parágrafo 1º, inciso II, e 244 da Constituição Federal, artigos 219, 222 e 223 da Constituição do Estado de São Paulo, nos artigos 2º, 3º, 7º e 43 da Lei federal nº 8080/90, na Lei Complementar Estadual nº 791/95, a condenação da ré para arcar com as custas integrais do tratamento (internação especializada ou em regime integral ou não), da assistência, da educação e da saúde específicos, ou seja, custear tratamento especializado em entidade adequada (não estatal, portanto, que não existe com tais características uma única no âmbito do Estado) para o cuidado e assistência aos autistas residentes no Estado de São Paulo que, por seus representantes legais ou responsáveis, comprovem mediante atestado médico tal condição (de autista), documento este que deverá ser juntado a requerimento endereçado ao Exmo. Secretário de Estado da Saúde e protocolado na sede da Secretaria de Estado da Saúde ou encaminhado por carta com aviso de recebimento (endereço: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, n. 188). A partir da data do protocolo ou do recebimento da carta registrada, conforme o caso, terá o Estado o prazo de trinta (30) dias para providenciar, às suas expensas, instituição adequada para o tratamento do autista requerente. A instituição indicada ao autista solicitante pelo Estado deverá ser a mais próxima possível de sua residência e de seus familiares, sendo que, porém, no corpo do requerimento poderá constar   a instituição de preferência dos responsáveis ou representantes dos autistas, cabendo ao Estado fundamentar inviabilidade da indicação, se for o caso, e eleger outra entidade adequada. 0 regime de tratamento e atenção em período integral ou parcial (ou internação especializada) deverá ser especificado por prescrição médica no próprio atestado médico antes mencionado, devendo o Estado providenciar entidade com tais características. Após o Estado providenciar a indicação da instituição deverá. notificar o responsável pelo autista, fornecendo os dados necessários para o início do tratamento. Tudo isso até que o Estado, se o quiser, providencie unidades especializadas próprias e gratuitas (e não as existentes para o tratamento de doentes mentais "comuns" para o tratamento de saúde, educacional e assistencial aos autistas, em regimes integral ou parcial (ou internação especializada). Requereu o deferimento do pedido liminar e, ao final, a procedência da ação com a condenação da ré ao cumprimento das diversas obrigações de fazer e das atividades apontadas, tudo sob pena de cominação de multa diária no valor de R$50.000.00, com valores revertidos nos termos do artigo 13 da Lei Federal nº 7347/85 (fls.2/36). Juntou documentos (fls.37/192).

 

            Por determinação do Juízo (fls.193/194 e fls.358/359), a inicial foi emendada pelo autor (fls. 196/203 e fls.361/366), inclusive com a juntada de novos documentos (fls.207/357 e fls.367/407).

 

            Recebidos os aditamentos (fls.404) e citada a ré (fls.407), esta apresentou sua contestação, alegando, em resumo, após tecer considerações sobre a Síndrome de Kanner, que ao contrário do que afirmava o autor, tem buscado manter, por si ou por entidades a ela conveniadas, o atendimento ambulatorial das pessoas portadoras de tais transtornos do desenvolvimento psicológico, porém, com vagas insuficientes diante da grande demanda. Motivo pelo qual a Secretaria de Saúde vem ampliando sua capacidade de atendimento especializado, principalmente em relação aos portadores de autismo, efetuando levantamento das instituições, contatos telefônicos e visitas, tudo para processo de formação de convênios pelo SUS, com encaminhamento de 'recursos por meio da referida Secretaria. Assim, sem sentido a irresignação do autor, fundada na alegada omissão do Estado, não podendo a Fazenda concordar com. a disponibilização de verbas para o custeio de atendimento. de autistas em clínicas particulares, pois vem atuando para firmar convênio com ditas instituições a fim de proporcionar o adequado tratamento. Asseverou, também, que pela carência de seus recursos e ausência de normas especificas para a rede pública de saúde, não poderia ser obrigada a atender indiscriminadamente todo,e qualquer autista, pois tinha como obrigação constitucional garantir à população acesso aos serviços e ações de saúde, sem privilégios de qualquer espécie e, muito menos, estar sujeita a decisões de outro poder, no caso 0 Judiciário, que resultariam em co-gestão dos recursos orçamentários, alterando a destinação do dinheiro público, além de ser descabida a multa diária. Requereu, ao final, a improcedência da ação (fls.409/428). Juntou documentos (fls.427/523).

 

            Foi indeferido o pedido liminar de antecipação dos efeitos da tutela (fls.525/526).

 

            Manifestou-se o autor, em réplica, ratificando os termos da inicial (fls.528/542).

 

            Intimadas as partes a especificarem suas provas (fls.543), requereu a ré a produção de prova testemunhal e documental (fls.544), enquanto o autor pugnou pelo julgamento antecipado (fls.545).

 

            Deferido prazo à ré (fls..546 e 562), esta juntou novos documentos (fls.547/555 e fls.563/590), do que teve ciência o autor (fls.556 e fls.591), manifestando-se (fls.558/561 e fls.591,v.).

 

            É o Relatório.

 

            DECIDO.

 

           Trata-se de ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra a Fazenda Pública Estadual, objetivando, em síntese, com amparo nos artigos 196, 198, 227, parágrafo 1º, inciso II e 244 da Constituição Federal, artigos 219, 222 e 223 da Constituição do Estado de São Paulo, nos artigos 2º, 3º, 7º e 43 da Lei Federal nº 8080/90, na Lei Complementar Estadual nº 791/95, a condenação da ré para arcar com as custas integrais do tratamento de interação especializada, em regime integral ou não, de assistência, de educação e de saúde específicos, ou seja,.custear tratamento especializado em entidade adequada para cuidar e dar assistência aos autistas residentes no Estado de São Paulo, até que a  administração Estadual, se o quiser, providencie unidades especializadas próprias e gratuitas (e não as existentes para o tratamento de doentes mentais "comuns") para o tratamento de saúde, de educação e de assistência aos autistas, em regime integral ou parcial ou de interação, sempre especializada.

 

           Nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, a ação comporta o julgamento antecipado da lide, pois as questões suscitadas são de direito e os fatos encontram-se suficientemente provados pelos documentos juntados aos autos pelas partes.

 

            A princípio, antes do exame da matéria de mérito, necessário algumas considerações sobre o Autismo.

 

            Como ensina E. Christian Gauderer, o adjetivo autista foi introduzido na literatura psiquiátrica em 1906, por Plouller, médico que estudava o processo do pensamento de pacientes que faziam referência a tudo no mundo e a sua volta, consigo mesmos, num processo considerado psicótico (in AUTISMO, Ed.Atheneu., 3ª ed., p.9/10).

 

           Já, em 1943, Leo Kanner, psiquiatra infantil da John Hopkins University (USA), ao estudar um grupo de crianças gravemente lesadas e que tinham certas características comuns, entre as quais, a mais notável era a da incapacidade de se relacionar com as pessoas, utilizou‑se do adjetivo em pregado por Plouller para intitular o seu trabalho de "Autistic Disturbance of Aflective Contact ‑ Distúrbio Autístico do Contato Afetivo descrevendo com ele a qualidade de relacionamento destas crianças. Foi por meio de tal estudo que, em dois anos, Kanner criou o substantivo autismo para designar tal entidade, sendo que em sua homenagem chegou‑se à denominação de Síndrome de Kanner (in AUTISMO, Ed. Atheneu, 3ª ed., p.9/10).

 

  Na definição atual da Organização Mundial da Saúde (in Classificação Internacional de Doenças, 9' ed.), o "Autismo Infantil é uma síndrome presente desde o nascimento, e se manifesta invariavelmente antes dos 30 meses de idade. Caracteriza‑se por respostas anormais a estímulos auditivos ou visuais, e por problemas graves quanto à compreensão da linguagem falada. A fala custa a aparecer, e, quando isto acontece, nota‑se ecolalia, uso inadequado dos pronomes, estrutura gramatical imatura, inabilidade de usar termos abstratos. Há também, em geral, uma incapacidade na utilização social, tanto da linguagem verbal como corpórea. Ocorrem problemas muito graves de relacionamento social antes dos 5 anos de idade, como incapacidade de desenvolver contato olho a olho, ligação social e jogos em grupo. 0 comportamento é usualmente ritualístico e pode incluir rotinas de vida anormais, resistência a mudanças, ligação a objetos estranhos.e um padrão de brinca~ estereotipado. A capacidade para pensamento abstraio simbólico ou para jogo imaginativo fica diminuída. A inteligência varia de muito subnormal, a normal ou acima. A performance é com freqüência melhor em tarefas que requerem memória 'simples ou habilidade vis114 espacial, comparando‑se com aquelas que requerem capacidade simbólica ou lingüística.

 

            Usa-se como sinônimos da síndrome autista os termos: Autismo da Criança, Psicose Infantil, Síndrome de Kanner, e o número estatístico é 299.0. Esta classificação ainda cita três outras, sob o título geral de Psicose com Origem Específica na Infância (299. 0): a Psicose Desintegrativa (299. 1); a Psicose/outra (299.8) e a Psicose Inespecífica (299.9). " (in AUTISMO, Ed.Atheneu, 3ª ed., p. 14).

 

            E, foi a partir da década de 60 que firmou‑se o diagnóstico do Autismo pa um transtorno de origem biológica comprometedor do Sistema Nervoso, sugerido por uma interrupção precoce no desenvolvimento das células da Região Límbica do Cérebro, pai responsável por mediar o comportamento social.

 

            Tal transtorno biológico pode ter como fatores o genético (maior incidência) as doenças infecciosas pré‑natais (rubéola, caxumba, sífilis e herpes) e até intoxicação química ou ambiental, pelo que o autismo não é uma doença, mas uma síndrome, pois um conjunto de sintomas que podem termais de uma origem.

 

            E, para o tratamento, conforme se observa da publicação do Ministério da Saúde, AUTISMO, Orientação para os pais ‑ Casa do Autista (fls.299), "a variedade t terapias, voltadas para o tratamento do autismo, se deve às diversas características q~ apresentam à grande diferenciação na apresentação dos casos. Veremos que cada um atende a urna necessidade específica. 0 melhor resultado não é o ob tido pela freqüência de todas as terapias disponíveis. De nada adianta sobrecarregarmos os autistas com m maratona de tratamentos. Os êxitos virão na medida em que se puder conciliar necessidades do autista com as de sua família, sejam necessidades físicas, afetivas, sociais e financeiras.

 

            A psicoterapia tem um papel essencial nos tratamentos desses quadros recomenda‑se, principalmente, o uso de abordagem relacional, com ênfase no controle emocional, na modificação de comportamento e na resolução de problemas.

 

            As técnicas psicoterapêuticas utilizadas com autistas geralmente observam três fases. A primeira fase envolve a superação do isolamento. Na segunda fase, o terapeuta fornecerá os limites iniciais, ajudando a criança a desenvolver seus próprios limites. Finamente, na terceira fase, haverá a tentativa de compreender o conflito que ocasionou a retração. " (fls. 16/17).

 

           Em resumo, como bem observaram os I. Representantes do Ministério Público, Dr. João Luíz Marcondes Junior e Dr. César Pinheiro Rodrigues, "A questão, portanto, assim deve ser colocada: mesmo que a família do autista tenha disponibilidade de pessoalmente prestar cuidados, o que quase nunca ocorre, tal não é suficiente porquanto o autista "tratado domesticamente " não lhe vê confiado o imprescindível tratamento especializado, que lhe possibilite melhorar gradativamente e, por exemplo, abrandar‑lhe a violência a níveis mais suportáveis, enfim, propiciar uma melhor adequação do autista ao seu meio.".

 

           Feitas tais considerações, no mérito, malgrado o zelo e o esforço da Ilustre Causídica da ré, obrigatória a procedência da ação.

 

           A questão é de singelo entendimento.

 

           Como é cediço, a Constituição Federal impôs ao Estado o dever de prover as condições necessárias ao pleno exercício da cidadania e da dignidade da pessoa humana, fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º), sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º).

 

           Para tanto, elegeu como direito fundamental do indivíduo,, o seu direito à vida (artigo 50) e na qualidade de garantia social, o direito à saúde.

 

           Em especial, para o direito à saúde, expressamente assegurou a todos dentro do território nacional, independentemente de quaisquer formas de discriminação, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação, pois é dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos (artigo 196).

 

           Também, em relação à saúde, determinou. serem de relevância pública tais ações e serviços, para a sua promoção, proteção e recuperação, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente, ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado (artigo 197).

 

            E, ainda, estabeleceu que as ações e serviços públicos de saúde integrem uma rede regionalizada e hierarquizada e constituam um sistema único, organizado de acordo com as diretrizes (artigo 198) da descentralização, com direção única em cada esfera de governo (inciso 1), do atendimento integral, com prioridade para atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (inciso III) e da participação da comunidade (inciso III), financiado nos termos do artigo 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes (parágrafo único).

 

            Nessa esteira e de maneira idêntica, fixou expressamente a Constituição do Estado de São Paulo expressamente ser a Saúde um direito de todos e um dever do Estado (artigo . 219), garantidos mediante (parágrafo único) políticas sociais, econômicas e ambientais que visem ao bem-estar físico, mental e social do indivíduo e da coletividade e à redução do risco de doenças e outros agravos (1), com acesso universal e i igualitário às ações e ao serviço de saúde, em todos os níveis (2), com direito à obtenção de informações e esclarecimentos de interesse da saúde individual e coletiva, bem como de atividades desenvolvidas pelo sistema (3), para atendimento integral do indivíduo, abrangendo a promoção, preservação e recuperação de sua saúde (4).

 

            Para as ações e os serviços de saúde, declarou serem de relevância pública (artigo 220), prestados pelos órgãos e instituições públicas estaduais e municipais, da administração direta, indireta e fundacional, que constituem o sistema único de saúde (artigo 222), ao qual compete a assistência integral à saúde, respeitadas as necessidades específicas de todos os segmentos da população (artigo 223, inciso I).

 

            Na esfera infraconstitucional, disciplinou a Lei Federai nº 8080/90 ser a saúde um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado promover as condições indispensáveis para o seu pleno exercício (artigo 2º), garantindo condições ao bem-estar físico, mental e social (artigo 3º), de acesso universal e igualitário a todos (artigo 7')., sempre gratuitamente (artigo 43).

 

            No Estado de São Paulo, seu Código de Saúde, Lei Complementar nº 791/95, declarou ser a saúde uma das condições essenciais da liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei, sendo o direito a ela inerente à pessoa humana, constituindo‑se, por isso, em direito público subjetivo (artigo 2º), assegurado pelo Poder Público como instrumento que possibilite à pessoa o uso e o gozo de seu potencial físico e mental, repetindo no mais os mandamentos constitucionais, já elencados acima.

 

            E, por fim, em razão do que dispõe o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal, quanto à outros direitos fundamentais decorrentes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, é de se considerar o disposto no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pois "toda pessoa tem direito a um nÍvel de vida suficiente para assegurar a sua saúde", e a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, desde 20 de dezembro de 1971, a qual estabeleceu que "a pessoa mentalmente retardada tem direito à atenção médica e ao tratamento físico que requeira seu caso, assim como à educação, à capacitação, à reabilitação e à orientação que lhe permitam desenvolver ao máximo sua capacidade e suas aptidões”.

 

            Temos dos autos, então, que ao apresentar sua peça de defesa, a ré não contestou sua obrigação constitucional de prover as condições para a saúde de todos, inclusive dos portadores de Síndrome de Kanner, nos termos do artigo 196 e seguintes da Constituição Federal de 1988, artigos 219 e seguintes da Constituição do Estado de São Paulo e da Lei Orgânica da Saúde, Lei Federal nº 8080/90.

 

            Tanto o é, que foi clara em afirmar que vem buscando manter, por si ou por entidades a ela conveniadas, o atendimento ambulatorial e de internação de pessoas portadoras de tais transtornos do desenvolvimento psicológico e mental, porém, com vagas insuficientes diante da demanda, motivo pelo qual a Secretaria de Saúde está buscando ampliar sua capacidade de atendimento especializado, principalmente em relação aos portadores de autismo, efetuando levantamento das instituições, contatos telefônicos e visitas, tudo,para processo de formação de convênios pelo SUS e encaminhamento de recursos por meio da referida Secretaria (fls.427/523, fls.547/555 e fls.563/590).

 

            Em conseqüência, nessa parte, é de se reconhecer a hipótese do inciso II do artigo 269 do Código de Processo Civil, ou seja, houve o reconhecimento do pedido.

 

            Porém, no que diz respeito a extensão de sua obrigação constitucional e a forma de atendimento aos pacientes portadores de autismo, contestou a ação, nos termos do artigo 302, e seus incisos e parágrafo único, do Código de Processo Civil.

 

            Impugnou o pretendido atendimento indiscriminado e seu custeio, seja por tratamento ambulatorial, seja por internação, para todo e qualquer portador da Síndrome de Kanner, independentemente da situação financeira da família e em entidade particular indicada pelos representantes legais.

 

            Sustentou que a sua obrigação constitucional de garantir à população acesso aos serviços e ações de saúde, sem privilégios de qualquer espécie, mediante atendimento gratuito, restringia‑se apenas aos que se mostrassem carentes de recursos.

 

           E, da mesma forma, declarou, em razão do princípio da Tripartição dos Poderes expresso no artigo 2º da Constituição Federal, não estar sujeita a decisões de outro Poder que resultassem em co-gestão ou alteração da destinação de verbas do seu orçamento, pois só seu o dever de gerir a coisa pública, elegendo, segundo critérios de conveniência e oportunidade, as diretrizes e as prioridades governamentais. Mesmo porque, em razão da carência de recursos públicos e ausência de. normas específicas para a rede pública.de saúde, não poderia aceitar privilégios de qualquer espécie.

 

           Entretanto, para tais impugnações não lhe assiste qualquer amparo Constitucional ou legal.

 

           A uma, pois despido de qualquer fundamento jurídico e moral, o argumento trazido, o da falta de dotação orçamentária para tal atendimento específico, ou seja, para doentes mentais, mesmo que extraordinariamente caros em razão da especificidade da síndrome, no caso, se autista de "alto funcionamento" ou de "baixo funcionamento", se de pequena ou de avançada idade.

 

           Simples seria se o Governo do Estado de São Paulo passasse a realmente destinar verbas suficientes para programas específicos, em razão do grande número de pacientes que se encontram em tal situação, pois a referida síndrome atinge entre 0,04% a 0,05% da população, certamente desenvolveriam um atendimento decente de amparo à sociedade e, assim, cumpriria com as diretrizes constitucionais de atendimento integral nos termos dos princípios da universalidade e da igualdade de acesso aos serviços de saúde.

 

           Como sugestão, para tanto, poderia dispor daquelas vultosas quantias desperdiçadas em publicidade, dita informativa à população, mas que, na maioria das vezes, são verdadeiras campanhas políticas, e que quase sempre acabam impugnadas e anuladas por meio de ações civis públicas, como recentemente vem sendo questionada judicialmente a campanha publicitária do Governo do Estado de São Paulo para a absurda "taxa de policiamento".

 

            A duas, em conseqüência do acima exposto, deve o Governo do Estado de São Paulo prover a todos das condições necessárias ao pleno exercício dos direitos à vida e à saúde, sendo irrelevante a maneira como será distribuído o serviço.

 

            Porém, a discricionariedade a que se refere a Fazenda Estadual, só é admitida apenas na escolha da melhor política para satisfazer a demanda, mas nunca de maneira a impossibilitar o fim almejado pelas apontadas Normas Constitucionais.

 

            O Poder Discricionário da Administração não é absoluto, pois então estaria subordinado a critérios aleatórios, culminado com providências insensatas e desarrazoadas, as quais por certo não atingiriam a finalidade da lei e não atentariam para o interesse público.

 

            Nesse sentido, é pacifico que havendo falha administrativa no cumprimento das apontadas Normas Constitucionais e Legais, quando da condução do Governo, pode sim o Poder Judiciário determinar providências para atender interesses fundamentais ou sociais, quer de um indivíduo, quer da coletividade.

 

            A três, pois como comprovado nos autos pelos documentos juntados pelas partes, apesar da iniciativa da Administração Pública, desencadeada coincidentemente após as sucessivas citações em ações individuais propostas por representantes legais de autistas e na presente ação civil pública, continua o Estado de São Paulo, por seus órgão e Secretarias, a não atender de forma eficaz e específica a população de portadores da Síndrome de Kanner, pois vêm apresentando até agora somente medidas aplicáveis no futuro voltadas para doentes metais em geral, as quais não podem ser aceitas pelo Juízo como aquelas determinadas pelas Constituições Federal e 'Estadual, para afastar as que ora estão sendo reclamadas imediatamente pelo autor, no atendimento para todos que padecem do autismo.

 

            Em conseqüência, enquanto o Governo do Estado de São Paulo não colocar à disposição de todo e qualquer autista, efetivamente, estabelecimentos próprios ou conveniados para o tratamento ambulatorial e de internação, especializados no atendimento da Síndrome de Kanner, em decorrência de sua inércia ou de seu descaso para com o mandamento constitucional, deverá sim responder pelo custeio do tratamento do referidos pacientes mediante o pagamento das despesas, podendo, em hipótese alguma, selecioná-los em razão da origem, da raça, do sexo, da cor> da idade ou quaisquer outras formas de discriminação, inclusive da situação financeira familiar, cumprindo assim o mandamento constitucional de prover as condições para a saúde de todos, nos termos do artigo 196 e seguintes da Constituição Federal de 1988, artigos 219 e seguintes da Constituição Estadual, da Lei Orgânica da Saúde, Lei nº 8080/90 e da Lei Complementar Estadual nº 791/95.

 

          Portanto, por qualquer ângulo que se examine a questão, nessa parte, não há como dar‑se guarida à defesa deduzida pela Fazenda Estadual, pois estão sendo violados os direitos fundamentais da população portadora de autismo, residente no território do Estado de São Paulo, diante da conduta omissiva do Poder Público Estadual a partir da Promulgação da Constituição Federal de 1988 e da Constituição estadual de 1989.

 

          Por fim, plenamente possível a imposição da multa diária para o caso de descumprimento da obrigação pelo devedor, mesmo quando for a Fazenda Pública. Ao contrário do que vem sustentando em sua contestação, não é o contribuinte quem vai arcar com o Ônus. Para tanto, basta à FESP tomar as medidas pertinentes, exigindo de seus funcionários organização e respeito às decisões Judiciais. Porém, se aplicada a multa deverá responsabilizar o funcionário que gerou o atraso no cumprimento da ordem judicial, exercendo o direito de regresso, sem prejuízo da ação por improbidade administrativa.

ANTE O EXPOSTO e o mais que consta dos autos, JULGO PROCEDENTE a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra a Fazenda do Pública do Estado de São Paulo, com fundamento no artigo 269, inciso I, do código de Processo Civil, para CONDENÁ‑LA, até que, se o quiser, providencie unidades especializadas próprias e gratuitas, nunca as existentes para o tratamento de doentes mentais “comuns", para o tratamento de saúde, educacional e assistencial aos autistas, em regime integral ou parcial especializado para todos os residentes no Estado de São Paulo, a:

 

            I - Arcar com as custas integrais do tratamento (internação especializada ou em regime integral ou não), da assistência, da educação e da saúde específicos, ou seja, custear tratamento especializado em entidade adequada não estatal para o cuidado e assistência aos autistas residentes no Estado de São Paulo;

 

            II - Por requerimento dos representantes legais ou responsáveis, acompanhado de atestado médico que comprove a situação de autista, endereçado ao Exmo. Secretário de Estado da Saúde e protocolado na sede da Secretaria de Estado da Saúde ou encaminhado por carta com aviso de recebimento, terá o Estado o prazo de trinta (30) dias, a partir da data do protocolo ou do recebimento da carta registrada, conforme o caso, para providenciar, às suas expensas, instituição adequada para o tratamento do autista requerente.

 

            III - A instituição indicada ao autista solicitante pelo Estado deverá ser a mais próxima possível de sua residência e de seus familiares, sendo que, porém, no corpo do requerimento poderá constar a instituição de preferência dos responsáveis ou representantes dos autistas, cabendo ao Estado fundamentar inviabilidade da indicação, se for 'o caso, e eleger outra entidade adequada.

 

            V - O regime de tratamento e atenção em período integral *ou parcial, sempre especializado, deverá ser especificado por prescrição médica no próprio atestado médico antes mencionado, devendo o Estado providenciar entidade com tais características.

 

            V - Após o Estado providenciar a indicação da instituição deverá notificar o responsável pelo autista, fornecendo os dados necessários para o início do tratamento.

 

            Para a hipótese de descumprimento das obrigações de fazer dos itens I a V, fixo a multa diária de R$50.000,00 (cinqüenta mil reais), destinada ao Fundo Estadual de Interesses Meta individuais Lesados (artigo 13 da Lei Federal nº 7347/85), tendo a ré o prazo máximo de 30(trinta dias), a contar da intimação da presente decisão, para disponibilizar, de forma permanente, tal atendimento aos portadores de autismo.

 

            Não há custas e despesas processuais a recolher e incabíveis honorários advocatícios.

 

            Estando sujeita a sentença ao reexame necessário, decorrido o prazo para processamento de eventual recurso voluntário das partes, subam os autos à E. Segunda Instância com as anotações de estilo.

 

            Expeça-se, com urgência, mandado para intimação. da Fazenda Pública.

 

P. R. I.

 

São Paulo, 28 de dezembro de 2001.

 

 

Fernando Figueiredo Bartoletti

            Juiz de Direito

 

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